A morte de Décio Sá e os desafios da Democracia


Carlos Nina*

Fatos como o assassinato do jornalista Décio Sá, vitimado em noite da semana passada, com seis tiros, à queima-roupa, em um restaurante localizado na Litorânea, avenida de maior movimento noturno de São Luís, capital do Maranhão, na presença de dezenas de pessoas, são emblemáticos e expõem os desafios da Democracia.

Não porque a vida das vítimas nesses casos valha mais do que as de outras. Mas porque a notoriedade das vítimas ou dos autores, ou alguma outra circunstância atraem o interesse da mídia, instrumento desse processo, pois acaba sendo responsável pelo filtro dos fatos que destaca. Nem poderia ser diferente, porque as ocorrências são muitas e nem mesmo o incremento da diversidade e da extensão da mídia seria capaz de fazer a cobertura de todos eles. Esses casos são usados como referência para a abordagem de temas cruciais para a Democracia.

A Democracia – e só a Democracia – possibilita esse debate, as cobranças públicas e, inclusive, os discursos equivocados de quem não sabe – ou sabe muito bem – o que é Democracia e, por uma razão ou outra, verbaliza absurdos, incoerências, despreparo, ignorância e estupidez, exatamente através da mídia.

No caso de Décio Sá não foi diferente. Amigos e colegas de trabalho da vítima enfatizaram isso, especialmente em programas de rádio, onde a indignação, muitas vezes contida, foi capaz de análises serenas e responsáveis sobre o fato, característica que faltou a autoridades cujo discurso foi e tem sido de quem não conhece suas responsabilidades e pensa que suas funções são limitadas a cuidar apenas de casos abordados pela mídia. Não se dão conta de que seu inusitado interesse, súbito empenho e extraordinária determinação para apurar fatos em destaque são uma confissão de desinteresse, despreparo e incompetência, além de revelação inequívoca da precariedade, senão caos, dos serviços públicos. Quando autoridades do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, nessas ocasiões, cobram enérgicas providências, ignoram que a cobrança destina-se a eles mesmos, pois são eles os responsáveis pelo poder/dever de prevenir, reprimir, apurar, julgar e punir; de fazer justiça e evitar a impunidade. Falam como se as providências que cobram competissem a outros e não a eles próprios. Alguns pronunciamentos chegam mesmo a ser feitos na esteira da hipocrisia, com ousadia cínica e/ou desrespeito.

Entre o caso Décio e o anterior de igual repercussão – já esquecido -, milhares de outros assassinatos cruéis foram cometidos e jazem impunes porque não foi propiciado às autoridades o estímulo midiática para tomarem “enérgicas providências”, “punir exemplarmente os culpados”, como se seus deveres se exaurissem na resolução por amostragem e na produção de estatística.

A Democracia exige coragem. Recorrer às armas, nos regimes autoritários, também exige coragem. Mas nenhuma coragem é maior do que aquela de quem opta por enfrentar as circunstâncias através da palavra, de peito aberto, sabendo dos riscos oferecidos pelos covardes. Nos regimes autoritários, a covardia parte do próprio Estado, que, pelo poder da força, censura, sequestra, tortura e mata, sem respeitar qualquer direito. Na Democracia devem prevalecer os princípios da igualdade, da legalidade, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Aí está o maior desafio da Democracia, pois exige firmeza das autoridades para que não sucumbam às tentações do autoritarismo e façam prevalecer os valores democráticos, tanto em benefício de um homem de bem, quanto para um criminoso contumaz. Isso exige consciência de cidadania, exige, sim, coragem para lutar contra os próprios instintos, sob pena de retrocesso civilizatório.

A Democracia exige luta permanente pelo respeito à dignidade humana. Repousa na liberdade e na consciência de cada pessoa da responsabilidade de sua cidadania. Exige persistência para conviver com os ignorantes e determinação para combater os covardes, sem a eles se igualar. Exige força de caráter para enfrentar os que carecem de dignidade nesse requisito.

O brutal assassinato de Décio Sá logo estará no esquecimento, lembrado quando outra vítima ocupar os espaços da mídia e estimular a sensibilidade midiática das autoridades para medidas enérgicas e punições exemplares. Mas, por isso, não lhes devemos apontar o dedo sem perguntar a nós mesmos se temos sido cidadãos, porque, na Democracia, o poder é do povo, que tem liberdade de manifestação, de opção, de fiscalização, de ação.

Não importa concordar ou não com o estilo jornalístico de Décio Sá. Seus desafetos dispunham de meios democráticos para enfrenta-lo, mas preferiram a via covarde dos pusilânimes, cujos direitos, contraditoriamente, a Democracia deve preservar.

A gravidade, portanto, da morte de Décio Sá, o que a distingue de outros casos, é porque com ela seus algozes atentaram contra um dos princípios essenciais da Democracia, que é a liberdade de expressão. O assassinato de Décio Sá é uma tentativa de intimidação. Por isso, mais importante do que o estardalhaço oficial,  foi o impacto e as reflexões causadas pela derradeira matéria que Décio Sá produziu com sua própria morte.

* Advogado.

 

 

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