Não botem o carro na frente dos bois! Devagar com o andor, que o santo é de barro!

(Bois de matraca e zabumba surgiram no São João de 1868. São Marçal, no João Paulo, é mais novo que São Pedro, na Madre de Deus, que tem 74 anos)

 

Herbert de Jesus Santos

(jornalista, escritor, pesquisador e folclorista)

Procissão terrestres percorre as ruas da Madre de Deus

Procissão terrestres percorre as ruas da Madre de Deus

herberth santos

De 23 de junho a julho adentro, a ordem de São João, na crença dos brincantes de  bumba-bois mais devotados, é cumprir suas promessas e incendiar o Maranhão de euforia.

Como saudava o boieiro Leonardo (do Boi de zabumba da Liberdade), “É tempo de se ganhar mais irmãos”! – em alusão à chegada de figurantes para vadiarem na Capital. Aberta a temporada de brilho e beleza do maior folguedo do Estado: o bumba-meu-boi, em sua dimensão de magia e pujança; a eletricidade do tambor-de-crioula, quadrilhas, dança do coco,

forró, e shows de artistas nativos. Com centenas de distrações (em dezenas de feitios), o Estado ostenta mais diversidade e grandeza joaninas, no País, pena que este não sabe, pois carecemos de publicidade nacional mais forte, em que perdemos, no grito da TV Globo, a primazia para Campina Grande (PB), só com forró e quadrilhas organizadas.

Com o batismo dos bois (de matraca, zabumba, pandeirões, orquestra e costa-de-mão), os mais tradicionais na noite da véspera de São João, a festança começa nas ruas enfeitadas de bandeirolas e balões multicoloridos, nos arraiais de barracas, comidas e bebidas típicas e nos terreiros que fizeram chamada para as atrações darem o ar da sua graça. É alegria para todos os lados! No amanhecer de São Pedro (29.6.), os bumba vão pagar promessa no largo da capela do santo, na Madre de Deus, onde milhares de fiéis aguardam a procissão terrestre e a marítima do Padroeiro dos Pescadores. No raiar do outro dia (30), abençoados por São Marçal, os bois de matraca percorrem a histórica Av. João Pessoa (que desavisados rebatizaram de São Marçal), no João Paulo. Dão um boi para entrar na briga, e uma manada, para não sair, “emendando as noites”, somente vencidos pelo sono e cansaço. Já no primeiro domingo de julho, os batalhões da Maioba, Pindoba, Maracanã, Iguaíba, Sítio do Apicum, da Matinha, etc., têm encontro marcado em São José do Ribamar (distante 36 km de São Luís), acordando os locais com saraivada de percussões e toadas na Av. Gonçalves Dias (Rua Grande). Depois, morrem, num domingo, com três dias de festa dançante e “comedoria”, em seus “viveiros”, entre os fins de julho a setembro, seguidos dos outros sotaques, até novembro.

Um só tipo: o boi primordial – Quem beber na fonte dos jornais do séc. 19, na Biblioteca Pública Benedito Leite, verificará que, até 1860, não existia boi de matraca nem de zabumba, ou outro estilo. Era o boi primordial. Até o guarda-roupa e a forma de apresentação eram semelhantes. Seria impossível que o Boi nascesse, entre nós, de uma vez com: matraca, ou sotaque da Ilha ( fixados em São Luís, depois em Icatu, Paço do Lumiar, Ribamar, etc.), zabumba, ou de Guimarães, costa-de-mão, ou de Cururupu, pandeirões, ou da Baixada (Pindaré, Viana, Penalva, São João Batista, etc.). Os brinquedos de orquestra achavam- se no futuro (meados do séc.20): de Rosário, Axixá, Morros, Primeira Cruz, Humberto de Campos, Santa Rita, etc.

Matraca na Ilha: 1868 – Com a proibição pela sociedade escravocrata, em 1861, os bois só retornaram no São João de 1868. Seu defensor, o jornalista João Domingos Pereira do Sacramento, em sua crônica no jornal Semanário Maranhense, de 12.7.1868, assim abraçou, em São Luís, a chegada da matraca e do caboclo-de-pena ou real, nos bois da Ilha, caracterizando, assim, o grupo indígena: “Introduziram na folgança do Boi, no São João deste ano, repinicados de matraca, no lugar de palmas com as mãos, e uns gritos que arrepiaram minha carne, como nunca se viu antes nas figuras do bumba”! Ali mesmo, criticou autoridades repressoras e abraçou a novidade: “Antes tarde do que nunca! Melhor com essa zoada toda do que o Maranhão passar sem o bumba, como foi de 1861 a 1867!”

Zabumba em Guimarães – Conforme o poeta e pesquisador Américo Azevedo Neto, na sua obra Bumba-meu-boi no Maranhão, no mesmo ano, precisamente, no povoado Jacarequara, então pertencente a Guimarães, um certo Gregório Malheiros substituiu por zabumbas e tambores de fogo os pandeiros idênticos aos dos bois da Ilha. A seguir, Damásio (há em Guimarães uma localidade e um boi com esse nome), com os novos instrumentos, aprimorou o sotaque, criando, desta forma, o grupo africano, com sua vestimenta cintilante.

Mãe Catirina e Pai Francisco bicentenários – Suas personagens centrais nasceram com a diversão. São os casos do “miolo” (quem dança sob armação do boi), cantador, doutor, Pai Francisco (Nego Chico) e Mãe Catarina, que o povo propagou Catirina, aliás, básicos no auto da matança, representada pela toada Urrou. Estão na crônica do Semanário Maranhense, de 5.7.1868, assinada pelo entusiasta Sacramento: “Não encontrei na folgança deste ano de 1868 a graça da antiga tagarelice desconchavada do doutor Pisa-Macio, do aparvalhado ridículo Pai Francisco, nem nos requebros da Mãe Catarina”. Sacramento considerou que esses caricatos, que ressurgiriam em outros junhos, teve seu retraimento ocasionado pelos sete anos em que o Boi ficou proibido: “Podemos justificar isso, na falta do uso de brincar. Se a memória não

falha ao cronista, na última vez que o Boi brincou foi na chefatura policial do Dr. Manuel Faria, e voltou, agora, em 1868, na do Dr. Morato.”

Caçado pelos escravagistas desde 1814, o Boi não demorou a ser cassado pela polícia, consoante sabemos, intolerância de antes do surgimento da Imprensa, no Maranhão, com O Conciliador (1820). No seu livro Mídia e Experiência Estética na Cultura Popular, a jornalista e mestra universitária (UFMA) Esther Marques confirmou: “O Boi aparece diante dos periódicos

como um folguedo agressivo, barulhento e agitador da ordem e da moral. Mas,  principalmente, uma brincadeira de negros, cativa de punições e proibições, desde 1814, pela polícia”. E seria assim —como o redator aqui analisa—, até que o império precisasse da negrada, na Guerra do Paraguai (1864-70), dando uma folga na perseguição.

Pedro Santo, na Madre de Deus, é de 1940 – Para sair do dito de “Em casa de ferreiro, o espeto é de pau”, em 2007, reuni parentes e amigos mais velhos, na capela, para unificarmos a origem da Festa de São Pedro, na Madre de Deus, pois a cada ano saía uma versão nos jornais: “Mais de 100 anos”, “50 anos”, etc. Na tarde da antevéspera do seu dia, Francisca Batista Soares dos Santos (D. Chica, de 78 anos, então) assegurou que se originou no Desterro, em 1939, vindo para a Madre de Deus, em 1940, onde havia mais pescadores, quanto seu marido, Filomeno dos Santos. O pescador aposentado José Raimundo Carvalho (o Zé de Zuleide, ali, com 105 anos) concordou, lembrando que, de 1940 a 1948, a capela era de taipa e palha, surgindo a de alvenaria e telha, em 1949, ajudada pelo político e industrial Cesar Aboud, dono da Fábrica Santa Isabel (Fabril, de tecelagem). “Antes disso, a festa era só de rezas e noitantes”! – rememorou. Isabel dos Santos Rodrigues (Bela, ali, com 74 anos), João Batista dos Santos (76), Gervásio Gomes dos Santos (74), meus primos, recordaram que, em 1945, o comunitário João de Roque criou a comissão organizadora, com que a festa ganhou leilão de prendas, procissões terrestre e marítima e a louvação de bumba-bois, no amanhecer de 29 de junho. Em 1949, houve a abertura do templo, com apoio da Colônia de Pescadores Z-1, da Madre de Deus, com Severino Godofredo dos Santos e Gregório Tito da Sena, presidente e tesoureiro, e, em O Imparcial (ed. de 28.6.1949, pesquisado por mim), convidaram a Cidade para o festejo e a inauguração oficial. Falavam de cadeira: seus pais e seus tios, como Meu Pai (Felipe Nery dos Santos), foram alguns dos criadores da tradição, e Nossa Avó, Marcelina Cirila dos Santos (Marcela), a primeira zeladora da igrejinha. Maria Francisca dos Santos Nogueira (69, ali) e Doriléia Nunes Santos (66), minhas irmãs, exaltaram os bois de zabumba, como os de Mizico, Medonho e Lorentino, e os de matraca , parabenizando São Pedro, e, hoje, todos os  sotaques, no largo da capela, que ganhou duas construções da Prefeitura de São Luís (1973-1995) e a atual, no alto, do governo Roseana Sarney, em 1997. Tudo registrado, qual um anúncio do jornal Pacotilha, de 1891, convidando São Luís para “a morte” do Boi da Madre de Deus, sendo talvez o mais antigo grupo folclórico do Maranhão em atividade; o lendário amo Zé Garapé nasceu, no bairro, em 1889, mas antes dele houve duas gerações de cantadores.

Havia até a procissão de São João – Não havia São Marçal (dia 30 de junho), em consonância com os periódicos são-luisenses mais antigos. Eram: “O casamenteiro Santo Antônio, o fogueteiro São João e o chaveiro São Pedro”, de acordo com o Semanário Maranhense, de 1860: “Depois da festança da morte, o boi era enterrado, no 30 de junho, se bem que sua carcaça já lhe estivesse arrebentada de cacete e fogo”. O Imparcial, em 1949, registrou que a procissão de São João, que não acontece mais, saía da sua igreja, na Rua da Paz.

São Marçal, no João Paulo, não tem nem 80 anos — Não há a apuração dos mais de 80 anos reivindicados para a apoteótica passagem dos bois de matraca, no João Paulo, à qual, em 2007, a comissão organizadora apregoou ter 80 anos, porém que, sem fundamentação científica, corre o risco por ostentar as pernas curtas.

Na Revista Atenas, de 1941, só o São João, ali; em O Imparcial, de 1949, idem. Antes dos arraiais oficiais, no centro, o São João era, no bairro, até nos 1960, com concurso de toadas entre bois da Ilha, incentivado pela Voz Diacuí e pelo vereador e babalorixá, José Cupertino. Os amos não tocavam em São Marçal,pois o evento, na realidade (talvez pela perda do movimento de São João, para a Praça Deodoro, com São Pedro firme, na Madre de Deus), começou, timidamente, nos anos de 1970, com os bois de matraca que, no São Pedro, apresentavam-se no João Paulo e arredores e, no amanhecer de 30 de junho, aguardavam seus transportes para voltarem aos seus “rebanhos”.

O santo de 30 de junho começou, em São Luís, numa canção de quadrilha: “Viva São João, São Pedro e São Marçal;/Santo Antônio, que é o santo casamenteiro,/ quebra o galho pro casal”! Num São João dos 1980, Mané Onça cantou no Boi da Madre de Deus: “Quando chega o mês de maio,/é que se começa a ensaiar./Com os três  ́santo ́ do céu,/eu vou benzer o meu lugar:/São João já me deu força,/São Pedro vem pra me ajudar,/São Marçal toma conta do apito,/que chegou a hora,/eu vou guarnecer meu pessoal!”

“Quem te mandou alemão tu te meter com os brasileiro?!” – Houve um tempo, aliás, que o João Paulo era um Paralelo 38 (alusão à Guerra da Coréia, na península asiática/1950-3),em que bois da Ilha não passavam por causa dos encontros violentos e tinham licença cassada pela polícia, na 2.a Guerra Mundial. Daí por que o receio do cantador Paulino, do Boi da

Pindoba, no São João de 1945, mesmo todos aliviados com o recente armistício, quando foi convocado pelo comandante do 24.o BC. Era para ele cantar, com o seu “batalhão”, conduzido, em silêncio, pelas imediações, uma toada em que exaltava o Brasil no  conflito, quando os bois de matraca introduziram, nos versos, batalhão, trincheira, canhão, bomba atômica, torpedo antiaéreo, rajada de metralhadora, etc.). Refeito do susto, Paulino velho-de-guerra mandou bala, puxando brasa só para a sardinha do Brasil: “O Brasil foi pras Oropas,/foi lutar no estrangeiro:/quem te mandou alemão/tu te meter com os brasileiro?!”

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