O CASO DA PENSÃO

 *Osmar Gomes dos Santos

 Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.

Recentemente, revisitando uma das obras primas de Aluísio de Azevedo, Casa de Pensão, senti-me novamente envolvido pela peculiar capacidade que o autor tem de nos envolver nas minúcias de sua trama. Decidir, então, ir um pouco mais além, e revivi algumas leituras sobre o acontecimento que deu contornos a essa obra prima do imortal maranhense, cuja semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Casa de Pensão emerge de uma história verídica, o Caso Capistrano, passada no último quarto do séc. XIX, e que bem remonta o contexto e o comportamento da sociedade daquela época. O enredo novelesco do caso concreto, típico dos romances policiais, inspirou uma leitura carregada de realismo e crítica social.

A casa em questão é comandada por dona Julia Clara, mãe viúva de Antonio Pereira e Julia Pereira, que a duras penas labutava nas aulas de piano para manutenção do lar. Seria uma casa comum, não fosse a combinação de seu tamanho com os escassos recursos da família. O endereço foi transformado em uma pensão – daí porque do trocadilho no título deste artigo – e os quartos ociosos alugados para pessoas oriundas de toda parte.

Antonio oferecera a João Capistrano, colega de escola, os aposentos para que o mesmo pudesse se hospedar, o que foi aceito. Capistrano era paranaense e sua família detentora de posses, mas faltava-lhe o titulo de doutor. Passado algum tempo como pensionista e já com a confiança da família, ele se envolve com a irmã de Antonio, passando a enamorar a menina.

Certa noite, do alto de irrefreável concupiscência, Capistrano teria se excedido ao adentrar o quarto da moça e usar de violência para com ela manter uma relação mais íntima. No dia seguinte, dona Julia tentou um acerto com o rapaz, que até prometeu, mas postergou o enlace com a jovem para data futura, passando a agir indiferente até o seu desaparecimento.

A família buscou a delegacia para formalizar uma queixa e consequente pagamento de indenização ao valor de 50 contos. Concluído o inquérito, o mesmo seguiu para a Justiça, onde Capistrano respondeu pela desonra cometida contra a menina.

O caso ganhou as ruas e teve estrondosa repercussão em folhetins e jornais da época. O fato  era notícia nos bares, cabarés, cafés e dividiu opiniões em cada esquina da cidade maravilhosa. Alguns queriam a condenação do moço, outros diziam não passar a moça de uma esperta que pretendia um bom casamento.

Calorosos debates tomaram conta do salão onde o julgamento ocorreu. Ao cabo do processo, os bons advogados constituídos garantiram a absolvição de Capistrano e o mesmo comemorou o resultado em grande festa oferecida a amigos no Hotel Paris.

Antonio passou dias pensando no que fazer frente aquela que considerava tamanha injustiça. Aquele que ontem era amigo, virou alvo da fúria cega de Antonio. Às 10h do dia 20 de novembro de 1876, na Rua da Quitanda, cinco tiros foram disparados e Capistrano caiu sem forças, indo a óbito pouco depois. O algoz foi preso ali mesmo, em flagrante.

A Escola Politécnica, onde os jovens estudavam, veste-se de luto. O saudoso Visconde de Rio Branco, diretor da unidade de ensino, determinou a suspensão das aulas por dois dias. Novo processo na Justiça, cabe o desfecho, assim como da primeira vez, ao corpo de jurados, instância que decidia pela inocência ou culpa nos casos de crimes graves.

Intensos debates seguiram e em 20 de janeiro de 1877 Antonio senta no banco dos réus. Eis o desfecho dessa novela da vida real que atraiu ainda mais a atenção da população. O mesmo júri que absolvera Capistrano, agora inocentara Antonio sob a cortina da honra da família.

Com toda destreza que lhe era peculiar, Azevedo extraiu a essência que do que se passou naquele acontecimento, que na semana vindoura transcorreram exatos 143 anos, e imortalizou em Casa de Pensão. A vida como ela era retratada em cada rabisco de uma trama que envolveu amizade, confiança, romance, honra, vingança, assassinato.

Tudo isso atravessado pela peculiar sensibilidade do escritor, que acrescentou ingredientes ainda mais picantes à obra, com pitadas da ácida crítica naturalista, fundada no determinismo como fator preponderante na formação do caráter e nas condutas humanas. Abre-se a cortina para o corredor paralelo do interesse financeiro, da inveja, do oportunismo, do preconceito, do machismo, da hipocrisia, da vida de aparências, do apego às coisas mundanas e do desapego ao ser humano.

Apresenta personagens típicos de suas obras, que buscam fora de sua terra natal algum reconhecimento, a exemplo do título de doutor almejado por Amâncio, que, na obra, personifica o jovem Capistrano. Revela um pouco do próprio Azevedo, quando foge aos grandes centros, notadamente Rio de Janeiro, para angariar o prestígio que lhe fora negado na terra das palmeiras.

Esta obra revela o lado oposto do apresentado em O Cortiço do ponto de vista do espaço da narrativa, mas guarda particularidades com a conduta social dos integrantes daquela sociedade. Retrata a vida nas pensões, muitas vezes nada familiares, onde predominava a hospedagem de jovens do interior e de outros estados na cobiça de um título de “doutor”, muitos dos quais caíam nas tentações mundanas que a cidade oferecia.

As teses naturalistas alicerçam a construção das personagens, especialmente de Amancio, que carrega trauma em razão dos males a que fora acometido. Do sofrimento na escola e no seio familiar até a busca de um título que lhe rendesse algum prestígio social, a vida do jovem passa por inúmeros acontecimentos, misturando-se descobertas, alegrias, paixões e tragédias, dentro de uma trama de causas e consequências.

Casa de Pensão forma com O Cortiço e O Mulato um tripé que sustenta toda a literatura pujante do naturalismo de Azevedo. Sem abandonar a leitura de outras importantes obras do autor, merece especial atenção tal repertório literário, uma vez que carrega elementos psicológicos, sociológicos e antropológicos que nos ajudam a entender muita da nossa herança cultural.

*Juiz de Direito da Comarca da Iha de São Luís. Membro das Academias Ludovicense de Letras; Maranhense de Letras Jurídicas e Matinhense de Ciências, Artes e Letras.

 

 

 

 

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