Obrigado, Mãe Bibi!

 

O dia 8 de dezembro é triste para mim, data do meu estigma espiritual, embora seja festivo para a população de São Luís. Marca as comemorações pelo transcurso do dia dedicado a  Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade. Fui uma única vez ao festejo religioso, na igreja do Monte Castelo. Não consegui me inserir no clima da festividade e acabei transformando o templo no muro das minhas lamentações.

Tudo remete ao 8 de dezembro de 1965, quando, aos 7 anos de idade, fiquei órfão de mãe. Perdi Benedita Rodrigues (Bibi), que, aos 28 anos, fez sua viagem celestial por conta de um acidente vascular cerebral (AVC). Todos os momentos ficaram gravados de forma bem marcantes na memória.

Eram aproximadamente 11h da manhã, quando ela me chama para que lesse o Jornal Pequeno, como fazia diariamente. Na manchete,  a descrição da trágica morte do prefeito José Silva, de São José de Ribamar. O acidente de trânsito ocorreu na Forquilha. Ele se deslocava da cidade balneária para a capital, dirigindo uma Rural Willys.

A estrada, à época, de piçarra, provocava muitos desastres e o prefeito, conduzindo em alta velocidade, derrapou, fez com que o veículo perdesse o controle e colidisse numa mangueira. Sem cinto de segurança – que não existia no período-, ele foi projetado para fora do carro, bateu com a cabeça numa mangueira e teve morte imediata.

  1. Termino a leitura e ela, deitada numa rede, pede que pare o restante e determina que chame o seu companheiro, Hilário Justino da Cruz, pai do saudoso jornalista Udes Cruz, com quem morávamos, porque estava se sentindo muito mal. Ele estava no quintal. Fui chamá-lo e percebi que mamãe já estava sentindo falta de ar.

Imediatamente Hilário sai às pressas e volta com um táxi. Ela foi levada para a Santa Casa de Misericórdia. Foi a última vez que a vi com vida. Em casa, fiquei com minha tia Deolinda, irmã dela, ambos em estado de sobressalto. Às 17h, a notícia que mudaria o curso de minha vida para sempre:

-Bibi não resistiu. Ela faleceu!

A informação nos foi passada por Hilário, que, pela primeira vez  vi tristonho e com um filete de lágrimas a lhe banhar o rosto. Era um homem duro, muito culto, fluente em inglês, português, matemática e muito beberrão.

As lembranças de minha infância não são nada animadoras do ponto de vista material. Desde que passei a entender as coisas, Bibi tinha Hilário como seu companheiro. Era funcionário do Departamento de Endemias Rurais, embrião da Sucam e depois Funasa, que funcionava onde é hoje o Supermercado Mateus do João Paulo. Trabalhava como guarda-sanitário, borrifando DDT em residências, no programa de combate à malária, nome pelo qual era conhecido o órgão.

São Luís, em 1965 era o retrato puro e sem retoques de uma província. Quase todos se conheciam. De acordo com o Censo do IBGE, eram apenas 160 mil habitantes. O clima político estava em ebulição. O então deputado federal Epitácio Cafeteira venceu as eleições para a Prefeitura, depois de ter sido o autor do projeto de lei que reeditou eleições diretas para as capitais. São Luís vinha sendo administrada pelo jornalista Djard Ramos Martins, que, viria a ser um dos meus maiores incentivadores no jornalismo anos depois.

Nesse ano, José Sarney, aos 36 anos de idade, desbancou o vitorinismo, vencendo o próprio  governador Newton Belo,  que renunciou quatro dias antes de sua posse para não lhe passar o governo. Todos sabiam que Newton Bello era o governador, mas quem mandava no Maranhão era o senador Vitorino Freire. A partir daí, Sarney e Cafeteira passaram a se engalfinhar tenazmente pelo comando político da capital e depois do Estado.  Só selariam a pacificação em 1984 quando Tancredo Neves foi eleito presidente da  República pelo Colégio  Eleitoral e os dois estavam no MDB.

Tancredo morreu em 21 de abril de 1985, abrindo espaço para a posse de Sarney na presidência. Cafeteira disputou  e venceu o governo do Estado, com apoio de Sarney, rompendo com ele ao final do mandato e se unindo ora com João Castelo, ora com Jackson Lago, até que, brigou com este último e se uniu ao grupo Sarney nos últimos anos  de sua vida, quando exercia o mandato de senador. Ele morreu em 13 de maio de 2018, em Brasília, depois de ter sido deputado federal, prefeito de São Luís, governador e senador.

Vivi muitas agruras no tempo  de criança. Apesar de funcionário público federal, Hilário não tinha apego familiar. Priorizava a boemia com os amigos. Por conta disso, Bibi se desdobrava em muita educação. Noite e dia me ensinando a ler e escrever, às vezes  sob a  luz da lamparina Aos 6 anos, estava alfabetizado por ela. Aos 7, fui levado a uma escola administrada pela Associação dos funcionários da Superintendência de Endemias Rurais. Minha mãe foi chamada pela professora.

-Dona Benedita, quero lhe parabenizar, mas seu filho acaba provocando um problema, porque sabe ler e escrever e os demais estão em fase de alfabetização.

Só iria para outra escola, no ano seguinte, mas aí veio a minha tragédia com a morte dela.

 

Era muito dura quanto ao meu comportamento. Não admitia mentiras e, se anunciasse que tivesse achado qualquer objeto de valor ela antes fazia uma investigação criteriosa sobre o achado. Não me ara admitido, por exemplo, ficar no mesmo ambiente durante conversa de adultos.

Lembro que moramos em várias casas alugadas nos bairros do João Paulo, Alto São Benedito e Ivar Saldanha. Conforto zero! Nunca tivemos luz elétrica, fogão a gás ou pelo menos um sofá na sala. Hilário dividia o tempo no trabalho, bebidas e fora isso, muita leitura. Devorava livros de português, matemática e latim.

Tivemos um casebre próprio, na parte baixa que margeava o quilômetro 8 da estrada de ferro São Luís/Teresina, no bairro Santo Antônio. A mata imensa da parte de trás levava ao Batatan, antes da construção da Avenida dos Franceses. Uma área inclusive de caça de animais silvestres.

Um sufoco danado!  A casa de taipa coberta de palhas, portas e janelas de mensaba e chão batido. A mobília se resumia a três mochos na sala. Apenas redes para dormir e, na cozinha, uma mesinha com banquinhos de madeira, um pote e um fogareiro a carvão.

Para completar, havia a maria-fumaça que aterrorizava os moradores. Não havia casas de telhas na vizinhança e a maria-fumaça, soltando brasas na passagem, vez por outra provocava incêndios numa residência. Como ato preventivo, sempre havia baldes de águas nas portas, para qualquer eventualidade.

Quando da passagens dos trens de cargas ou de passageiros, as casas tremiam, fazendo com que acordássemos durante a noite. Melhor do que o risco de uma casa pegando fogo. Eu passava um sufoco danado, imaginando que o trem pudesse desabar sobre a casa.

Naquele fatídico 8 de dezembro, o corpo de Bibi só chegou em casa altas horas da noite, acompanhado por um séquitos de amigos que ela conquistou durante sua curta vida. No velório, ouvi murmúrios de seu Hilário, de que não poderia ir ao enterro e aí montei minha estratégia. Recebia, a todo instante, um abraço e um beijo de amigos do casal e de parentes.

Na manhã do dia seguinte, fui chamado por Hilário e Deolinda, me informando que não iria ao sepultamento. Continuei chorando e nada respondi. O cortejo saiu às 15h. Duplas de homens, estimulados pela cachaça, se revezavam no carregamento do caixão, numa rede, sustentada por um caibro de madeira. Um na frente e outro atrás, em trote, pela via férrea, rumo ao cemitério do São  Cristóvão. Fiquei olhando de longe. Quando o grupo desapareceu na primeira curva, iniciei uma corrida, mas sempre articulando para que ninguém me visse.

Cheguei quase  junto com a turma, para surpresa geral. Não poderia deixar de participar da despedida daquela que me deu à luz. Como legado, a retidão de caráter  e a alfabetização como grande herança. Tive a sorte de cruzar, posteriormente, o caminho de outras grandes mulheres, verdadeiras mães que me adotaram como filho. Ana Amélia Lopes da Silva, Elizabeth Rodrigues, a Lizoca e Luzia Souto, sobre as quais estarei escrevendo a seguir.

A saudade jamais se esvaiu durante todo esse tempo. Só tenho a  agradecer. Foi uma gigante, do alto de 1,50m em uma curta mas marcante passagem pela Terra. Seus ensinamentos me guiaram e continuarão a me guiar pelo caminho do bem.

Muito obrigado, Mãe Bibi!

 

 

 

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