Valeu, Ana Amélia!

Amiga de minha mãe Benedita (Bibi), Ana Amélia Lopes da Silva é figura extremamente marcante na minha vida. Ambas devem acompanhar e guiar meus passos lá da janela da Eternidade. Não sei como se conheceram, mas lembro que costumava, ainda bem pequeno, passar dias e dias no casarão de Ana Amélia, na Rua Professor Arimatéia Cisne-242, no Apeadouro, desfrutando de um ambiente agradável e acolhedor.

As duas tinham traços em comum. Eram morenas, de baixa estatura e muito rígidas. Ao contrário de mamãe, que enfrentava problemas conjugal e financeiros, Ana Amélia, casada com Georgino Benício Rodrigues (Nhô), tocava, com mão de ferro uma família bem estruturada, com oito filhos. Essa prole seria aumentada posteriormente com a adoção minha e da Kátia, hoje servidora aposentada da Polícia Civil do Maranhão.

Nhô, era uma pessoa adorável e carismática. Funcionário de baixo escalão da Receita Estadual, se desdobrava em outras atividades para dar conta do bem estar da família. Chegou inclusive a montar um clube dançante, o “Brega”, como forma de elevar a renda familiar. Ele e Ana Amélia preservavam muito a educação de todos.

Ela se destacava pelas habilidades. Era professora de corte e costura, datilografia, culinária e de artesanato. Com esse trabalho, complementava a renda familiar. Sem serem ricos, Nhô e Ana Amélia não deixavam faltar nada aos filhos e propiciaram um futuro relativamente promissor para todos.

Depois da morte de Bibi, em dezembro de 1965, passei um tempo entre idas e vindas a Cururupu, terra de minha mãe e de nossa família. Ficava na casa de minha avó, Maria Francisca (Chiquita), até que, em 1967, vim de vez para São Luís, morar na casa de Ana Amélia, a pedido do casal.

Mudei da água para vinho com a mudança. Dormia numa beliche, tinha fartura na mesa, roupas novas e também usadas. É que mamãe Ana Amélia costumava utilizar roupas dos filhos mais velhos, quando rasuradas, adaptando-as para os mais novos. Exerci, ali, a infância em toda sua plenitude. Empinei papagaio, joguei bolinha, chuço, bati muita pelada com a garotada do bairro e saí no tapa sempre que necessário.

Estava num ambiente repleto de movimentos, de alegria, onde todos tinham responsabilidades.

Todos os filhos tinham responsabilidades com afazeres domésticos. José Bernardo, hoje desembargador aposentado e chefe de Gabinete da Corregedoria Geral de Justiça do Maranhão, João da Mata (in memoriam), foi empresário no Rio de Janeiro, Luiz Fernando, servidor aposentado do Incra, Henrique, contabilista autônomo, Antônio Assunção (Bagre) (in memoriam), foi sargento da Polícia Militar do Maranhão, Maria das Graças, professora aposentada, Maria de Fátima, cirurgiã dentista, Maria do Socorro, policial civil, além de mim e da Kátia. Aquele lar funcionava em perfeita sintonia.

O ano de 1967 foi de impacto da política nacional, em plena vigência do regime militar. Houve a posse do general Costa e Silva na presidência da República em 15 de março. Ano que entrou em vigor a Lei de Segurança Nacional, com supressão de direitos políticos e a introdução da 4ª Constituição Brasileira.

No Maranhão, Sarney dava andamento à construção de importantes obras de Infraestrutura, como a construção da estrada São Luís/Teresina, Porto do Itaqui, Ponte São Francisco, Barragem do Bacanga, além da implementação da hidrelétrica de Boa Esperança, dentre outras ações.

Para não ficar atrás, o prefeito Epitácio Cafeteira iniciou o processo de urbanização da cidade, eliminando inclusive o sistema de transporte via bondes, construiu postos de saúde em diversos bairros, implementou um programa de saneamento, fortaleceu a Educação e ditou novo ritmo de gestão municipal.

Era, também, o período do bipartidarismo. A Arena, partido dos militares, tinha maioria no Parlamento em todas as esferas, tendo na oposição o MDB. São Luís não poderia ser diferente. Só que, na eleição para a Mesa Diretora da Câmara Municipal de São Luís, realizada no dia 1° de fevereiro daquele ano, foi eleito o vereador Walter Ferreira, da oposição.

Temendo represálias por parte dos militares, ele foi bater na 27ª Circunscrição do Serviço Militar (27º CSM), localizada ao lado do Hospital Universitário Presidente Dutra. Conversou com o comandante da unidade militar, coronel Belchior, que lhe garantiu permanência no cargo diretivo sem qualquer contratempo.

Como o voto era secreto, Walter Ferreira me relatou, no final da década de 1990, na Câmara Municipal, que sua vitória, por um voto de diferença, teve a articulação de Epitácio Cafeteira, que conseguiu atrair o apoio de um vereador arenista.

Foi o período da Jovem Guarda, movimento artístico que projetou Roberto Carlos, Wanderleia, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso e muitos outros grupos e cantores. Foi inspirado no rock-and-roll e no soul, em nomes como Elvis Presley e os Beatles. Havia álbuns e figurinhas e passávamos as manhãs escutando músicas no rádio, principalmente no programa “Quem Manda é Você”, apresentado por Zé Branco, na Rádio Difusora. Ao meio dia, imperdível a crônica “Difusora Opina” texto e apresentação de Bernardo Almeida. Pautava a cidade. Na Rádio Educadora, ficava atento ao programa infantil “Dona Carochinha”, que foi criado por uma freira francesa e era apresentado pela radialista Nicomar Costa, que anos depois tive o prazer de entrevistá-la, durante as comemorações dos 40 anos da emissora. Na Rádio Timbira, acompanhava, nas tardes de domingo, a jornada esportiva, com o programa “Futebol é Coisa Séria”,  com Jámenes Callado, Mário Flexa Ribeiro, Canarinho e Ruy Dourado, com o quadro “Futebol de Meia Tigera”. Imperdível.

A vida na casa de Ana Amélia era extremamente cultural. Curtíamos tudo o que o casal propiciava. Sempre que recebia o salário, íamos para um piquenique na Maioba. Na Semana Santa assistíamos ao filme à Paixão de Cristo no Cine Rex, que funcionava ao lado do quartel do Exército, no João Paulo, onde atualmente está instalada uma agência bancária.  Todo ano, a mesma película. As mulheres se desmanchavam em choro durante a cena de crucificação.

No Carnaval, era levado para a Avenida São Marçal (antiga João Pessoa), para assistir à exibição de tribos de índios, blocos de sujo e organizados, além da passagem da casinha da roça, grupo de fofões, de ursos e o Corso.  Este último era um caminhão com a carroceria enfeitada, repleto de meninas bonitas, que jogavam maisena e lançavam jatos de água colorida na plateia.

Vida boa e de responsabilidades para todos. Como o quintal era enorme e findava na rua de trás, a Bom Milagre, tínhamos que varrê-lo diariamente, por conta da folhagem das mangueiras, do tamarineiro, do pé de limãozinho, além de uma frondosa caramboleiro e goiabeiras.

Acordávamos como se fôssemos militares. O casal impunha muitas regras. Limpávamos o banheiro, banhávamos os quatro cachorros (Polux, Duque, Dick e Totó). Quem estudava pela manhã estava livre desses afazeres. Mesmo pequeno, eu sempre ia comprar pães numa padaria que ficava na rua Armando Vieira, que liga as avenidas São Marçal e Kennedy.

Por volta das 10h, as meninas começavam a catar arroz, para o início do preparo do almoço. Aí, Ana Amélia reinava sozinha na cozinha. Era exímia. Ainda dá água na boca lembrar da comida que preparava. Para completar,  me levava à Vila Palmeira, onde só existiam casas de palha e no São Francisco, para suas aulas de corte e costura , culinária e datilografia, em associações de moradores. O acesso ao São Francisco era feito em pequenos botes, porque a ponte só seria inaugurada em 14 de fevereiro de  1970.

Como já estava alfabetizado, embora sem jamais ter frequentado uma escola, ela me levou ao Grupo Escolar Governador Matos Carvalho, na rua Raimundo Correa, para a matricula. Tive que fazer uma prova de português, matemática e um ditado. Fui direto para o 3° ano, no início de 1968. Era um dos primeiros nas notas e um dos últimos em comportamento.

Sempre que ela ia buscar o boletim, estava lá o Djalma com média de dez, nove oi oito em matérias e de três a cinco no comportamento. Por conta disso, levei várias surras. Gostava quando a Socorro ia representá-la nas reuniões de pais e mestres. Me protegia e não dizia a realidade.

Tempos maravilhosos! Sempre era escalado para representações de peças teatrais, e até para discursos em datas comemorativas. A professora Raimunda Aires, por quem mantive um amor platônico até o final do antigo primário, em 1969, me tratava com extremada educação e às vezes me aconselhava para melhorar o comportamento.

O péssimo comportamento se resumia, entre eu e um grupo, de colocar espelhinhos na ponta do sapato, para vislumbrar as calcinhas das colegas, jogar aviõezinhos na sala durante a aula e, nos sábados, depois da aula, trocar sopapos com alunos da outra turma do quarto ano, para aparecer como corajosos aos olhos das coleguinhas. Eu  liderava o grupo  da minha turma.

Nem tudo eram flores. Havia, também castigos. Caso houvesse um mal feito em casa sem que aparecesse o culpado, todo mundo entrava na taca. Uma palmatória denominada “Dendeca”, em alusão a uma música do sambista Oswaldo Nunes, grande sucesso da época, ficava pendurada na parede. O número de bolos era pela faixa etária. Começava com doze nos mais velhos, oito para a faixa intermediária e, eu e a Socorro, mais novos, pegávamos apenas  seis. Todo mundo apanhava ajoelhado.

Hoje, entre gargalhadas, sempre lembramos desses episódios durante reuniões da família. Contamos aos nossos filhos e netos. Ninguém ficou com raiva dos pais. Nhô era o executor dos corretivos. Interessante é que se o casal não descobrisse  o autor do erro, embora todos soubessem, não havia deduragem. Tinha um pacto de silêncio. Nunca apareceu um delator entre o irmãos.

Ana Amélia era rígida, sofisticada, e ao mesmo tempo, dona de um impressionante lirismo. Comprou um violão pra mim e cismou que eu deveria ser cantor. Gostava quando  interpretava a Carta, de Waldik Soriano e Mamãe estou tão feliz, de Agnaldo Timóteo. Por conta disso, em 1969, mandou Socorro me inscrever no programa de calouros do Moacir Neves, na TV Difusora.

Fui ensaiar com o maestro Nonato, do famoso Nonato e seu Conjunto. Ele gostou e chamou o Murilo Campelo, diretor artístico e pediu que repetisse. No Dia das Mães, fui e me apresentei. Muitos aplausos e uma inesquecível premiação. Uma caixa de sabão e outra  de óleo,  da Oleama, que patrocinava o programa.

Era, também líder comunitária e juntamente com Dona Júlia, amiga que morava na Rua Bom Milagre, dirigia a Associação de Moradores. Distribuía, aos mais necessitados, lei em pó, bulgur, grão de trigo integral para confecção de quibe, queijo, fubá de milho, óleo comestível e até roupas. Tudo oriundo do programa “Aliança para o Progresso”, implementado pelo governo dos Estados Unidos, para ajudar no combate à pobreza nos países que formaram o bloco aliado que atuou na luta contra o nazismo, durante a Segunda Guerra Mundial.

Inesquecível essa passagem de minha vida, até que, no dia 13 de agosto de 1971, sem motivo aparente, como avaliei depois, fugi de casa. Saí às 11h da  manhã, depois da ameaça de uma pisa, porque havia danificado um pequeno rádio de pilha. Só retomei contato com a família, 10 aos depois, quando era chefe do setor de Revisão do Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado, o extinto Sioge.

Em 1981, pude entregar, pessoalmente, naquele órgão,  a cópia do ato de nomeação ao irmão José Bernardo Silva Rodrigues como juiz de Direito da Justiça do Maranhão. Ele estava acompanhado do grande e saudoso jurista Pedro Leonel Pinto de Carvalho. Tomou um susto, nos abraçamos e, a partir daí, a relação com a família voltou à normalidade.

Ana Amélia me deixou um grande legado. Foi minha segunda mãe. Seus ensinamentos foram fundamentais para minha formação. Uma mulher forte, sábia e guerreira.  Nasceu no Piauí, em 31 de janeiro de 1925 e se transformou em saudades no dia primeiro de novembro de 2011.

A esta grande mulher, minha eterna gratidão.

 

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