Tua bênção, Lizoca!

Percebi que havia uma aura de candura, bondade, serenidade e inteligência envolvendo Elizabeth  de Morais Assis Rodrigues (Lizoca), ao ser apresentado pelo seu afilhado, o então soldado da Polícia Militar, Antônio João Muniz.  Esse feliz encontro aconteceu no início da noite do dia 4 de novembro de 1971. Foi em sua casa, no Filipinho, conjunto de 28 casas padronizadas de propriedade da extinta Rede Ferroviária Federal (Reffesa), onde residiam famílias de servidores do órgão, na cidade de Rosário.

Casada com o ferroviário João  de Souza Rodrigues, o João Giquiri, cuidava, com esmero, da educação de seis filhos: Suely (Sula), Ruy Deglan (In memoriam), Washington (Pixó), (In memoriam), Wagner (Bagão), Rodson (Ló), e Jackson (Neném), o mais novo. Naquele momento, me tornei o sétimo filho do casal e ganhei o apelido de Dreko. Jamais soube o que isso significa.

O núcleo habitacional, existente até hoje, fica localizado a poucos metros de onde funcionou a estação ferroviária da cidade, na entrada da cidade. O nosso encontro se deu permeado de uma série de acontecimentos que acabam se resumindo como uma autêntica aventura para um menino de 13 anos. Quando fugi da casa de Ana Amélia, no dia 13 de agosto, tomei os trilhos do trem,  nas imediações do bairro Fé em Deus como bússola.

Vagueei pela suas margens até o São Cristóvão e fui para o Aeroporto do Tirirical, onde cheguei por volta das 16h, cansado, com sede e com fome. Vi uns rapazes lavando carros. Me aproximei. Chegou um cidadão conduzindo um Landau. Me confundiu com um lavador e pediu que lavasse a pintura e os pneus do veículo.

Fui observado por um grupo de lavadores. Percebi que seria hostilizado. Me aproximei do mais velho e relatei minha situação. Ele me emprestou um balde com água, sabão e um escova. Ganhei uns trocados, fiz o lanche e continuei a jornada no rumo da BR-135.

À noite, cheguei no Tibiri. Encostei num comércio, onde um grupo de homens jogava conversa fora, em meio goles de cachaça. Só pessoas da região. Desconhecido na área, chamei a atenção e um deles perguntou quem eu era.

Menti, dizendo que era fugitivo da Teresina, afirmando que morava próximo à Vila Militar, nas imediações do estádio de futebol Lindolfo Monteiro. Disse que estava fugindo da casa de um tio que me maltratava e que era órfão de pai e mãe. Conhecia esses pormenores geográficos de Teresina em função das informações obtidas nas transmissões esportivas, quando times do Maranhão jogavam no Piauí.

O cidadão era dono de uma oficina de carro e me levou para sua residência. No dia seguinte, assim como seus dois filhos, virei ajudante de mecânico. No terceiro dia, um dos garotos me disse haver escutado uma conversa de que alguém, com sobrenome Guterres havia perguntado por mim lá no comércio.

Esperei chegar a noite e decidi ir embora. Embarquei na carroceria de uma D-10, que fazia linha para Santa Rita. Desci em Periz de Baixo. Eram 20h. Cheguei numa comércio, onde a tosca iluminação de 110 volts fazia que se forçasse a vista para reconhecer o ambiente.

Uns rapazes conversavam alegremente. Eram operários que trabalhavam na instalação de uma torre da antiga companhia telefônica do Maranhão, a TELMA. Contei a um deles minha situação. Acabei indo dormir num barracão com o grupo. Fui muito bem tratado. Me deram comida, um calção e uma camisa nova.

Virei assunto no povoado. Um senhor sexagenário de nome Almir veio conversar comigo. Era retirante cearense. Morava com a esposa numa casa de pau a pique no meio do campo. Decidiu que fosse morar com ele. Aceitei e me transformei em coqueluche para sua família, toda analfabeta. Lia a Bíblia para todos aos domingos e passei a alfabetizar um casal de netos do casal.

Como tarefa, ia buscar leite numa fazenda 3 quilômetros distante. Uma vez, cheguei a ser perseguido por uma cobra boiúna. Eu e um neto dele, de nome Lucas, que depois virou empresário do ramo automotivo. Fiquei apenas 17 dias, até descobri que Almir estava envolvido em roubo de porcos. A aventura continuou. Me sentia como um autêntico andarilho.

Nessa fuga, acontecida às 5h da manhã, acebei em Rosário, onde cheguei às 11h, mais de 20 km de caminhada. Encontrei um adolescente conhecido como José Mandi, descansando sobre um vagão de trem. Puxei conversa e ele me convidou  para tomar banho no rio Itapecuru. Um grupo que trabalhava numa embarcação nos chamou para almoçar. Convite pronta e alegremente aceito.

A embarcação iria para Cedral. Usei a mesma conversa sobre Teresina e pedi para ir com a tripulação. O proprietário do barco acabou me levando para o Fórum da cidade e me apresentou ao juiz. Este por sua vez, me encaminhou para a delegacia de polícia. O delegado, de nome Olimar e os soldados José de Ribamar Pestana e Antônio João Muniz me recepcionaram. (Pestana foi um dos maiores jogadores do Moto Clube e depois foi transferido para sua cidade natal, Cururupu, foi promovido a sargento e virou delegado, Antônio João deixou a PM e se tornou servidor da Coliseu, em São Luís. Ambos são falecidos).

Não sabiam o que fazer comigo, dormi numa rede que instalaram no gabinete do delegado. No dia seguinte, percebi que fizeram um teste. Me chamaram para uma conversa e, em seguida, foram saindo de um a um. Sozinho, vi um maço de dinheiro no canto da sala. Peguei o pacote e coloquei sobre a mesa do delegado.

Quando voltaram, mostrei o maço de dinheiro e o delegado disse que havia caído do seu bolso. Ganhei confiança e o Antônio João me levou para morar com ele. Preparava o nosso almoço todo dia. Salsicha ou sardinha com macarrão e arroz era o cardápio.

Ele foi transferido meses depois para São Luís e me levou para a casa de Lizoca. Estava outra vez numa família, extremamente acolhedora. Lá descobri, que o José Mandi, primeira pessoa com quem conversei em Rosário era sobrinho da matriarca.

Na noite de minha chegada àquela casa, Lizoca me encaminhou para a cozinha, onde a Suely me recepcionou com extremada gentileza e me convidou para jantar. No dia seguinte, já estava enturmado com os meninos. A infância voltou ao seu curso normal. Banhávamos no rio Itapecuru e no riacho Precaú, que passa sob uma ponte na entrada da cidade. Jogávamos bola num campinho ao lado do Filipinho e participávamos de outras atividades inerentes à criançada. O Marcone Bimba, que anos depois seria eleito prefeito do município, participava do nosso grupo.

Peraltices não faltaram. Com os filhos de Lizoca e outros meninos do conjunto, descobrimos que a gráfica que confeccionava o talonário de passagens de ônibus da linha Rosário/São Luís, era a mesma que imprimia os ingressos do cinema da cidade.

Para completar, os canhotos das passagens de ônibus eram descartados no lixo. Mesma cor e tipologia dos ingressos. O porteiro era analfabeto. Então, pegávamos os canhotos e quando era anunciado que faltavam 5 minutos para a exibição do filme, nos misturávamos na multidão  e o porteiro recebia os  canhotos pensando ser ingressos.

A farra acabou quando certa noite, eu e os saudosos Ruy e Pixó, escutamos um funcionário do cinema, ao lado do porteiro afirmar:

-Hoje a gente pega essa turma!

Escapamos por pouco. Estávamos a um passo de entregar os canhotos.

Minha temporada na casa de Lizoca  me deixou muitas  saudades. Era uma mulher extremamente prendada. Professora, enfermeira, costureira, muito culta e sagaz. Seu sorriso, encantador, às vezes beirava um ar  de sarcasmo, quando não acreditada no que lhe diziam.

Conversávamos muitos sobre história e geografia. Gostava também de Política. O governador do Estado, Pedro Neiva de Santana, à época, lhe chamava muito atenção. Rosário vivia uma feroz disputa entre os grupos de Ivar Saldanha e  Orlando Aquino. Se revezavam no poder. Mesmo sem frequentar escolas, até porque não tinha documentos e ninguém sabia o que fazer comigo, aprendi muita coisa com ela. Elevei meu grau de cultura.

Me colocou para trabalhar numa oficina, do sapateiro Zico Mandi, um jogador de futebol, integrante da seleção de futebol do município, que depois virou comerciante. Com sobras de couro, costumava confeccionar sandálias que levava para meus novos irmãos.

Percebi que  jamais acreditou na história de Teresina. Quando a Reffesa transferiu João Giquiri para São Luís, vi que havia chegado a hora de acabar com a encenação. A chamei na cozinha e contei toda a verdade sobre minha origem

-Djalma, tu pensas que estava acreditando nessa história?- foi sua resposta.

O Antônio João estava na cidade e disse a ele que minha tia Deolina trabalhava no Salão Mônica, defronte ao quartel da Polícia Militar, no Convento das Marcês. No dia seguinte, ela foi me buscar. Posteriormente,  passei uma temporada com essa abençoada família, na rua Pires de Saboia, no bairro da Alemanha.

Havia chegado a adolescência, João Giquiri me colocou para um trabalho temporário na Refessa, onde sofri pequeno acidente, que provocou uma grande infecção no pé esquerdo. Ela me tratou. Chegou a passar uma noite inteira sentada numa cadeira, ao lado da minha rede, cuidando da purulenta infecção.

Muito ativa em São Luís, ela se transformou numa grande liderança  comunitária chegando a disputar mandatos para a Câmara Municipal, Assembleia Legislativa e Câmara Federal.

Foi uma autêntica mãe, uma grande amiga, que me deixou grandes ensinamentos e muitas saudades. Nascida em  19 de junho de 1932, faleceu na data de hoje, 22 anos atrás, em 22 de setembro de 2005, aos 73 anos.

Sempre rezo em sufrágio de sua alma.

De onde estiver, peço mais uma vez a tua bênção, Lizoca!

 

 

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